sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Prédios

Você não acha incrível que os prédios não caiam? Existem milhões de prédios no mundo, muitos estão de pé há anos e anos, com quarenta, noventa andares, uns em cima dos outros, feitos de cimento, pedra, aço, barro: não seria nada estranho se, de tempos em tempos, algum desabasse por aí. Pegaríamos o jornal, pela manhã, e leríamos: “Edifício despenca no Chipre: vítimas chegam a oitenta”, “Síndico afirma: prédio que ruiu em Pinheiros havia passado pela revisão anual”, “Desabamentos condominiais são a oitava causa de morte, na Ásia”.

Nas matérias, peritos acusariam um lençol freático, um ataque silencioso de cupins, uma infiltração antiquíssima no banheiro de empregada do terceiro andar, então ficaríamos um pouco tristes, como sói acontecer diante das tragédias distantes, e tocaríamos a vida. Fazer o que? Prédio é arriscado mesmo, mas é o preço do progresso, como os aviões, os enlatados, as usinas nucleares, vamos que vamos.

Fico ainda mais abismado com a segurança dessas construções quando penso que não precisa fazer nada para conservá-las de pé. Máquinas precisam de manutenção. Computador precisa de manutenção. Dentes precisam de manutenção. Só prédio é que não. Basta construir e pronto. Não há que passar verniz nas colunas, todo verão, jogar cimento nas fundações, a cada dois anos ou, quem sabe, substituir os tijolos, de década em década. Pelo menos, aqui onde eu moro, nunca vi nada disso. Tem dedetização, reforma na coluna d´água, pintura da fachada, enfim, só perfumaria.

Se eu vivesse muito tempo atrás, quando ainda não existiam prédios, e soubesse que um engenheiro estava projetando essa revolucionária forma de moradia, seria terminantemente contra. Claro que não vai dar certo! Vai cair! Imagina só, se dez pessoas no último andar correm todas para o mesmo cômodo? Tragédia! Eu poria meu nome num abaixo assinado, iria para a praça fazer passeata, ergueria faixas: prédio, não! No entanto, a idéia não só deu certo como prédio é o que a humanidade faz de melhor. Os povos acabam, morre todo mundo, sobra o que? Prédios. O que são as pirâmides, senão os prédios dos egípcios? Partenon? O prédio dos deuses. Quando queremos dizer que os Incas, Maias e Astecas eram evoluídos, mencionamos seus rituais? Sua tapeçaria? Sua matemática? Nada. Falamos, “ó lá os prediões que eles construíam, ainda tão de pé!”

As religiões são duradouras, as línguas são duradouras, a humanidade, até, é duradoura. Mais dia menos dia, contudo, voltaremos ao pó do qual viemos, com nossos deuses e nossas histórias. E se, depois de nossa extinção, alienígenas pousarem sobre a Terra, querendo saber a que se dedicava a humanidade, olharão em volta e poderão fazer uma única afirmação, com segurança: prédios.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Senta, ô careca!

Poucas coisas ferem mais a alma do brasileiro do que “permanecer sentado até a parada total da aeronave e apagarem-se os sinais luminosos de apertar cintos”. Da próxima vez que viajar de avião, repare. Mal acabou aquele burburinho que segue à aterrissagem - aquele farfalhar de vozes e risadas que não quer dizer outra coisa senão “ufa, sobrevivemos!” - e os passageiros já começam a se mexer, aflitos, sobre seus assentos flutuantes. Trata-se de um jogo silencioso, do qual todos os viajantes participam, cuja regra é: quem ainda estiver sentado quando for permitido levantar-se é bicha!

Veja bem, não trago o tema à baila por achar que esses afobadinhos causem grande perigo à sociedade ou ameacem nossas instituições. O máximo que pode acontecer é o avião dar um solavanco, eles se desequilibrarem, quebrarem umas costelas ou passarem dessa para melhor - o que seria problema unicamente deles. Falo sobre o assunto pois acho que, destrinchando-o, podemos esclarecer outros comportamentos de nosso povo – assim como uma descoberta num gene das drosófilas pode acabar trazendo grandes avanços, digamos, ao cultivo de repolhos.

Observando o bigodudo ilegalmente de pé, ali, no meio do corredor, ou o careca clandestinamente curvado sob o compartimento de bagagens, entendemos melhor a confusão do brasileiro no que tange à observância das regras. Como herança da escravidão, nós nunca entendemos que a lei é um código comum, destinado a organizar minimamente o fuzuê, de forma que possamos caminhar com alguma segurança em direção à felicidade. Vemos a lei como a demonstração de poder de uma pessoa sobre a outra. E o passageiro insubmisso não aceita receber ordens do comissário de bordo, um sujeito que, pouco antes, estava servindo-lhe suco e amendoim – e que, não menos importante, costuma ser jovem e, digamos, bem apessoado. Mal ouve o anúncio de permanecer sentado, o insurgente pensa “quem ele acha que é?!”, então levanta-se e executa, em ato, a máxima nacional que Roberto da Matta formulou tão bem: “você sabe com quem está falando?!”. Caso a voz no sistema de som seja de uma aeromoça, a hipótese continua válida. Afinal, vou receber ordens de uma mulher? Eu? Na frente de todo mundo?!

Pobre do brasileiro, sua virilidade não resiste a uma ponte aérea! Diante de tais fatos, sugiro que o governo crie o Ministério da Psicanálise, destinado a combater as causas de tamanha insegurança em nossa pátria tão despatriada. E sugiro aos comissários e aeromoças que sejam mais agressivos na repressão: “Senta, ô Bigode!!” e “Bota o cinto, careca!” soando no sistema de som podem ser tão efetivos quando os ensinamentos de Freud, Jung ou Lacan na diminuição dos sintomas.